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Convém ao cristão lutar por seus direitos na justiça?

O assunto proposto seria trivial, se não causasse em muitos cristãos um certo conflito, proveniente da informação de que devemos viver separados do mundo, de tal modo que nada do que for do mundo possa nos servir. Mas não é assim, pois o Senhor Jesus em sua oração sacerdotal (João 17) rogou ao Pai não para que nos tirasse do mundo, mas para que nos guardasse do mal (verso 15). Também ensinou que o crente é o “sal da Terra e a luz do mundo” (Mateus 5-13-14). Ora, o sal exerce sua missão não quando está no saleiro, mas quando se encontra fora dele. Igualmente a luz se torna útil quando serve para clarear as trevas.
Esse ensino nos remete inevitavelmente ao convívio em sociedade, procurando nos preservar, no entanto, da contaminação de seus mundanismos, conforme os exemplos de José e Daniel nas cortes do Egito e da Babilônia respectivamente. Tão influentes foram esses homens de Deus naqueles ambientes, quanto separados. Por influência de Daniel, o conhecido matemático Pitágoras, em sua biografia, narra ter sido seu aprendiz, adotando até mesmo seu hábito alimentar.
Acerca das demandas, a Bíblia nos traz dois panoramas distintos. O primeiro se configurou quando a nação de Israel caminhava rumo a Canaã. Jetro, sogro de Moisés, deu-lhe um conselho, da parte de Deus, para constituir juízes que fossem escolhidos dentre o povo mesmo (Êx. 18.13-26). O segundo caso ocorreu na época em que se iniciava a Igreja Primitiva — que emergia do meio do paganismo gentílico e do ceticismo judaico, os quais detinham na época o poder de julgar. O apóstolo Paulo recomendou que os irmãos solucionassem seus próprios litígios (1Coríntios 6.1-8). É evidente que a preocupação do grande apóstolo era pastoral e não jurídica, porque naquele momento histórico sabia que os crentes em Jesus deveriam dar um testemunho de superioridade e separação em relação àquela sociedade gentílica e pecaminosa. Naquela ocasião, os apóstolos, de certa forma, repetiam o feito de Moisés na condução do povo de Deus, primeiro para fora do Egito espiritual, depois rumo à Canaã celestial. Portanto, não poderia o cristão, com sua vida completamente transformada, com novos valores existenciais dados por Jesus, submeter-se a um julgamento feito por homens sem esses valores, sem Deus, e muitas vezes até sem o devido senso de justiça.
Os cristãos primitivos não poderiam submeter suas demandas ao julgamento dos rabinos, porque seriam hostilizados como seguidores daquele que os havia chamado de guias de cegos e sepulcros caiados. Também não pelos juízes romanos, porque o fato de não serem cidadãos romanos representava o risco de não receberem julgamento com justiça. Observe o exemplo do próprio Pilatos em relação a Jesus: mesmo não vendo nele falta alguma, entregou-o à morte, sem qualquer processo, sem qualquer defesa. O conselho de Paulo serviria ainda hoje, por exemplo, para uma comunidade cristã que vivesse no meio de uma sociedade islâmica. Todos os julgamentos dessa sociedade são feitos a partir das leis islâmicas, que diferem em muito do Cristianismo verdadeiro.
Hoje, porém, vivemos em um país que se diz cristão, apesar dos devaneios da sociedade brasileira. Sua organização política estabelece a igualdade entre todos os cidadãos (art. 5º da Constituição Federal) e que qualquer ameaça ou lesão ao direito civil “não poderá ser excluído da apreciação pelo Poder Judiciário” (art. 5o, XXXV, CF). É importante lembrar que muitos homens e mulheres crentes em Jesus participaram do processo de redação da nossa Constituição Federal.
O cristão deve entender que as autoridades foram instituídas por Deus (Romanos 13.1) e que os juízes foram suscitados pelo Senhor para trazer solução humanamente possível ao sofrimento e opressão do povo (Juízes 2.16-18; 1Crônicas 17.9-10). Isso agrada a Deus. É um verdadeiro sacerdócio, obra que cabe ao homem realizar. O que é para o homem fazer, normalmente Deus não faz.
Conforme Levítico 19.15; Deuteronômio 16.18-20, 24.17, 25.1 e Provérbios 11.1, a Bíblia traça todo um perfil ético de como deve se comportar um magistrado (Deontologia) para o julgamento das demandas.
Parafraseando o escritor aos Hebreus, os tribunais terrenos são como sombra (Hebreus 8.5) do grande tribunal divino, que se haverá de instalar para julgamento dos homens (2Coríntios 5.10). Porém, a Bíblia nos ensina que as coisas espirituais se discernem espiritualmente (1Coríntios 2.14), não devendo ser misturadas com as seculares.
Jesus usou a parábola dos dez servos e das dez minas como indicativo de que devemos conduzir nossas vidas conforme a nossa necessidade. “Negociai até que eu venha” (Lucas 19.13b). Se alguém invadir nossa propriedade para espoliá-la, temos o dever de proteger nossa família e tudo o que o Senhor nos tem dado, recorrendo, se preciso for, à justiça humana, mas em atitude de oração, para que a mão do Senhor seja conosco. Se nesse ínterim o Senhor voltar para arrebatar a Igreja, muito melhor, pois dessa forma as coisas seculares terão terminado.
Devemos entender que as coisas de César são de César, e as de Deus, de Deus. Não se misturam. Umas seculares, outras espirituais e, desde que perante os homens e as instituições do país nos comportemos como filhos amados de Deus, guardando bom testemunho, em nada teremos afetada a nossa vida espiritual e nosso relacionamento com o Senhor. Portanto, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus de modo a impedir o pleno exercício da cidadania brasileira, sendo perfeitamente lícita e compatível com a vida cristã a busca de direitos perante a Justiça.
Autor: Pb. Gamaliel Seme Scaff
Juiz de Direito
Coordenador de Música da Assembleia de Deus – Curitiba/PR

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