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A DOUTRINA DA SALVAÇÃO: UMA BREVE INTRODUÇÃO AO CALVINISMO E AO ARMINIANISMO

A salvação pessoal é dádiva ou esforço? Depende somente de Deus? Depende somente do homem? Deus e o homem cooperam juntos?

No centro das discussões e embates acerca da doutrina da salvação, dois conceitos ganham destaque: sinergismo e monergismo.

O sinergismo, do grego syn (união, junção) e ergía (unidade de trabalho), significa o trabalho realizado em conjunto. Da perspectiva da doutrina da salvação (soteriologia), é a afirmação de que Deus e o homem cooperam para a salvação pessoal.

O monergismo, do grego mono (um, único, sozinho) e ergon (trabalho), significa o trabalho realizado por uma única pessoa. Na soteriologia, é a declaração de que Deus realiza tudo para a salvação pessoal, e que o homem é absolutamente passivo.

A DOUTRINA DA SALVAÇÃO NA BÍBLIA

Existe um amplo fundamento bíblico em favor do sinergismo, ou seja, de que Deus e homem cooperam para a salvação pessoal, de que dádiva e esforço estão presentes. Observemos algumas passagens:

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. (Ef 2.8-9)

Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente. (Tg 2.24)

Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. (1 Tm 1.14-15)

Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (Jo 1.11-13)

Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos? Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.    Com muitas outras palavras deu testemunho e exortava-os, dizendo: Salvai-vos desta geração perversa. Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas. (At 2.37.41)

Ora, como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, (Cl 2.6)   
        
Os textos acima citados, como muitos outros que poderíamos aqui listar, de maneira bastante clara apontam para uma “graça cooperativa”, e não para uma “graça operativa” na salvação pessoal.

A DOUTRINA DA SALVAÇÃO NO PERÍODO DOS PAIS DA IGREJA

Os Pais da Igreja foram alguns teólogos, mestres e bispos que se destacaram nas gerações posteriores aos apóstolos, principalmente entre os séculos II e IV, como difusores e defensores da ortodoxia doutrinária, e da fé cristã. Neste período, a perspectiva sinergista da salvação, que inclui o livre-arbítrio humano, esteve presente nos escritos de vários Pais, onde dentre os quais citamos[1]:

Deus, no desejo de que os homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia (Justino Mártir, Dialogue, CXLI)

Se não dependesse de nós o fazer e o não fazer, por qual motivo o Apóstolo, e bem antes dele o Senhor, nos aconselhariam a fazer coisas e a nos abster de outras? Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus (Irineu, Contra as heresias, IV, 37.1, 4)

Pois como o homem, desobedecendo, atraiu morte sobre si próprio, assim, obedecendo à vontade de Deus, aquele que deseja é capaz de obter para si mesmo a vida eterna (Teófilo de Antioquia, Autolycus, XXVII)

Mas nós, que temos ouvido pelas Escrituras que a escolha autodeterminadora e a recusa foram dadas pelo Senhor ao ser humano, descansamos no critério infalível da fé, manifestando um espírito desejoso, visto que escolhemos a vida e cremos em Deus através de sua voz (Clemente de Alexandria, Stromata, 2.4)

Há, de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que estabelecem com extrema clareza a existência da liberdade da vontade (Orígenes, De Principis, 3.1)

Deus, tendo colocado o bem e o mal em nosso poder, nos deu plena liberdade de escola; ele não retém o indeciso, mas abraça o que é disposto (João Crisóstomo, Homilia sobre Gênesis, 19.1)

É a partir de Agostinho de Hipona (354-430) que o entendimento acerca da salvação pessoal começa a ganhar ênfase monergista, ou seja, de uma salvação pessoal que depende unicamente de Deus. Acontece que tal entendimento de Agostinho tem haver com os chamados escritos tardios ou posteriores.[2] Quando ainda era jovem, Agostinho escreveu o seguinte:

O livre-arbítrio, naturalmente concedido pelo Criador à nossa alma racional, é um poder tão neutro que pode tanto se inclinar para a fé como se voltar para a incredulidade (O Espírito e a letra)

Sendo este o caso, os incrédulos de fato agem contra a vontade de Deus quando não creem no evangelho; não obstante, eles não vencem a sua vontade, mas roubam a si mesmos  o que é grande bem, o maior, e se enredam nas penalidades da punição (O Espírito e a letra)

Do ser humano não pode ser dito que tem a vontade com a qual crê em Deus, sem tê-la recebido [...], mas não ainda, de modo como se lhe fosse tirado o livre-arbítrio, e pode ser justamente julgado pelo seu bom ou mau uso (O Espírito e a letra)

Se crermos que podemos atingir essa graça (e, naturalmente, o cremos voluntariamente) a questão que surge é: De onde temos essa vontade? Se da natureza, por que não está às ordens de todos, visto que o mesmo Deus fez a todos? Se for dom de Deus, então, novamente, por que o dom não está aberto a todos, visto que “ele quer que todos sejam salvos, e cheguem ao conhecimento da verdade? Deus indubitavelmente deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade; mas não lhes tirando o livre-arbítrio, pelo bom ou mau uso do qual poderão ser justamente julgados (O Espírito e a letra)

Em sua obra prima “Confissões”, enaltecendo a soberania de Deus em detrimento da vontade do homem, Agostinho declara: “Ordenai o que quiserdes, doai o que ordenardes”.[3] E ainda: “Atribuo a vossa graça e à vossa misericórdia o me terdes dissolvido, como gelo, os pecados”.[4] Profundamente convicto da impotência de sua própria vontade em escolher corretamente, Agostinho passou a entender a salvação pessoal como a soberana dádiva de Deus, sem participação alguma do homem.[5]

Dessa forma, o entendimento de Agostinho sobre o livre-arbítrio humano também muda, ao afirmar que Deus exerce eficazmente o seu poder sobre a nossa vontade:

É certo que somos nós que agimos quando agimos; mas é ele que noz faz agir, ao aplicar poderes eficazes à nossa vontade, e disse: eu farei com que vocês andem nos meus estatutos, e observem os meus juízos, para os cumprirem (Graça e livre-arbítrio)

Tal pensamento de Agostinho sobre a submissão absoluta e irresistível da vontade do homem à vontade de Deus criou uma séria dificuldade. Se é Deus quem controla a nossa vontade, por qual razão ele não faz com que todos tenham vontade e recebam a graça da salvação em Cristo Jesus? A resposta de Agostinho foi mais dificultosa ainda, considerada cruel por alguns[6]:

Como o Supremo Bem, ele fez bom uso das ações más, para a condenação daqueles a quem ele tinha com justeza predestinado à punição e para a salvação daqueles que ele tinha misericordiosamente predestinado à graça (Enchiridion, p. 100).

Ele percebe que a totalidade da raça humana foi condenada em seu cabeça rebelde [Adão], por um julgamento divino tão justo que, se nem um simples membro da raça tivesse sido redimido, ninguém poderia com justeza questionar a justiça de Deus; e que foi justo que aqueles que são redimidos devem ser redimidos de tal modo que mostrasse, pelo maior número dos que não são redimidos e deixados em sua própria e justa condenação, o que toda a raça humana merecia, e para onde o juízo merecido de Deus teria conduzido mesmo os redimidos, se sua imerecida misericórdia não se interpusesse, de modo que pudesse ser calada toda a boca dos que desejam se gloriar em seus próprios méritos, e que aqueles que se gloriasse o fizesse no Senhor (Enchiridion, p. 99)

Grande de fato é a ajuda da graça de Deus, de forma a mudar o nosso coração para qualquer disposição que agrade a Deus. (A graça de Cristo)

Agostinho lança dessa forma os fundamentos teológicos da predestinação para a salvação pessoal, ou seja, Deus poderia mudar a vontade de todos os homens mediante a sua irresistível graça, salvando a todos, mas decidiu soberanamente fazer isso apenas com uns poucos, deixando a “grande massa de perdição” na condenação do inferno.

E por qual razão Deus age assim? A resposta de Agostinho e de todos os seus seguidores geralmente é: Deus não deve ser questionado, pois faz o que lhe apraz[7]; Não devemos querer compreender os mistérios de Deus[8]; Não sei. Observe o que R.C. Sproul diz sobre a questão:

A questão continua. Por que Deus salva somente alguns? [...] A única resposta que eu posso dar a essa pergunta é que eu não sei. Não tenho ideia por que Deus salva apenas alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus tenha poder de salvar todos, mas eu sei que ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê. Uma coisa sei. Se agrada a Deus salvar alguns e não todos, não há nada de errado com isso. Deus não está obrigado a salvar ninguém. Se ele escolhe salvar alguns, isso de modo algum o obriga a salvar o restante. De novo, a Bíblia insiste que é divina prerrogativa de Deus ter misericórdia de quem ele tiver misericórdia.[9]

A declaração de R. C. Sproul é absolutamente contrária a verdade bíblica de que Deus não tem prazer na morte do ímpio, que amou o mundo dando Jesus para a salvação de todos, que deseja que todos os homens sejam salvos, e que não quer quem ninguém pereça:

Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o SENHOR Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de Israel? (Ez 33.11)

Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (Jo 3.16)

Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos. (1 Tm 2.3-6)

Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. (2 Pe 3.9)

Dizer que Deus decide salvar uns poucos pecadores interferindo (arbitrariamente) em sua vontade, e que decide deixar outros condenados ao inferno, quando a Bíblia expressa que o desejo de Deus é a salvação de todos os pecadores, e que Cristo morreu por todos, é no mínimo colocar em dúvida o seu caráter e o seu grande e excelso amor.

Tentando minimizar o problema, John Piper argumenta que para conciliar a afirmação de que Deus deseja salvar a todos, com a ideia da eleição incondicional (predestinação), ele é portador de duas vontades, definidas historicamente como vontade soberana e vontade moral, vontade eficiente e vontade permissiva, vontade secreta e vontade revelada, vontade de decreto e vontade de preceito, etc.[10]

Entendemos que o desejo de Deus em relação à salvação de todos os homens é efetivado em razão de seu compromisso com algo mais elevado, que é a autodeterminação humana, a sua livre vontade para escolher, fundamental num relacionamento de amor com Deus, e não pelo fato de incondicionalmente Deus escolher uns poucos para serem salvos, e deixar na perdição eterna a grande maioria dos pecadores, o que no mínimo resultaria na ideia de que Deus tem duas maneiras de amar, uma geral e outra especial. A geral para com todos os pecadores, e a especial para com os pecadores eleitos incondicionalmente por ele. Isso não condiz com o caráter de Deus.

Esta cruel ideia da eleição incondicional de Deus nos remonta à oração imaginária citada por R.C. Sproul, onde ele afirma não saber a resposta para o falto de Deus resolver salvar apenas alguns:

O pecador no inferno pode estar perguntando: “Deus, se o Senhor realmente me amou, por que não me coagiu a crer? Eu preferiria ter meu livre-arbítrio violentado do que estar aqui neste eterno lugar de tormento”.[11]

Sobre o argumento de que Deus tem misericórdia de quem quer, Walls e Dongel esclarecem:

Quando Paulo declara a liberdade de Deus de ter misericórdia com quem quiser [Rm 9.14-18], Paulo não está forjando uma doutrina da eleição incondicional individual, mas estabelecendo a liberdade de Deus em derramar Sua misericórdia além dos limites da identidade étnica judaica. Para os judeus que amavam uma versão mais estreita da misericórdia de Deus, Paulo repetiu a palavra de Deus dita a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (Romanos 9:15; cf Êxodo 33:19). Há uma amplidão na misericórdia de Deus.[12]

James Daane alerta para o fato de que os capítulos 9-11 de Romanos não provam a doutrina calvinista da dupla predestinação, nem trata do tema “eleição individual”, antes, é um comentário sobre o fato da inviolabilidade da eleição de Israel como nação para o serviço de abençoar todas as nações ao apresentar Jesus Cristo.[13]

A DOUTRINA DA SALVAÇÃO NA IDADE MÉDIA

Em 529 d.C., No Concílio de Orange, realizado na França, a primazia da graça sobre as obras foi reafirmada e elevada à condição de doutrina. Toda iniciativa da salvação pessoal é obra da graça de Deus, e qualquer ensino contrário sobre essa verdade deveria ser condenado. Sobre o evento Roger Olson comenta:

[...] condenaram igualmente qualquer fé na predestinação divina para o mal ou o pecado, e permitiram aos cristãos fiéis crerem no livre-arbítrio que coopera com a graça divina. Durante a Idade Média tardia e a Renascença, alguns pensadores e líderes católicos pareçam solapar a prioridade da graça divina focalizando demais em atos humanos de penitência. Foi contra essa teologia oficial dos católicos da Europa, mais do que contra a teologia anterior, a oficial da igreja, que os reformadores protestantes reagiram.[14]

É exatamente no contexto dos abusos penitenciais do catolicismo romano, onde as obras e o esforço humano ganham preeminência na salvação pessoal, que emerge o movimento que culminou com a Reforma Protestante, com sua ênfase soteriológica inicial no monergismo agostiniano.

A DOUTRINA DA SALVAÇÃO EM LUTERO E CALVINO

Apesar de diversos outros nomes que colaboraram com o processo de implementação e expansão da Reforma Protestante, os de Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564) ganham destaque. Ambos adotam o monergismo de Agostinho de Hipona. O próprio Lutero era um monge agostiniano (seguidor das ideias de Agostinho). Timothy George comenta:

Visto que, fora da graça, o homem não possui nem uma razão sã nem uma vontade boa. “a única preparação infalível para a graça [...] é a eleição eterna e a predestinação de Deus”. Lutero não se esquivou de uma doutrina de predestinação absoluta e dupla, ainda que admitisse que “isso é um vinho muito forte e comida substancial para os fortes”. Ele até restringiu o alcance da expiação aos eleitos: “Cristo não morreu por todos absolutamente”.[15]

Contra as ideias monergistas de Lutero, Erasmo de Roterdã escreveu a obra Livre-Arbítrio e Salvação, onde refuta diversos versículos geralmente utilizados para defender as ideias da teologia de Agostinho, Lutero e Calvino.[16]

A influência de Agostinho sobre Calvino é também muito clara:

O que nos chama a atenção na aproximação bíblica de Calvino é, primeiramente, o seu amplo e, em geral, preciso conhecimento dos clássicos da exegese bíblica, os quais citava com abundância, especialmente Crisóstomo (c. 347-407), Agostinho e Bernardo de Claraval (1090-1153).[17]

[...] eu defino a predestinação, segundo o que ensina a Escritura Sagrada, como o livre conselho de Deus pelo qual ele governa a raça humana e cada parte do universo com a sua imensa sabedoria e insondável justiça. [...] as mesmas objeções maliciosas foram usadas contra Agostinho por homens impuros e sem valor, como você. Aquele doutor piedoso e santo também expôs uma breve resposta que hoje bastaria como defesa de minha causa.[18]

Esse raciocínio não é somente meu, mas também de Agostinho: se previsse aquilo que não queria que existisse, Deus não seria autoridade suprema.[19]

Nós adoramos reverentemente os mistérios que ultrapassam em muito nossa compreensão até que brilhe o pleno conhecimento, quando veremos face a face a quem, hoje, só conseguimos ver como por um espelho, obscuramente. Agostinho diz que: “Então, Deus será visto na mais clara luz do entendimento o que os piedosos presentemente veem pela fé.[20]

Reconheço que Agostinho dizia que Deus tinha duas vontades, mas que eram tão concordes uma com a outra que ficará claro, no último dia, que não há diferença em sua complexa forma de raciocínio.[21]

As ideias de Calvino, influenciadas por Agostinho, deram nome ao movimento reformado chamado de calvinismo. Dessa maneira, pode-se afirmar que o calvinismo é na realidade uma extensão do agostinianismo.

A DOUTRINA DA SALVAÇÃO NO PERÍODO DA PÓS-REFORMA

O pensamento monergista ganhou novos contornos através dos ensinos do teólogo francês Teodoro de Beza (1519-1605), discípulo e sucessor de Calvino na liderança da Igreja e da Academia de Genebra. No contexto acadêmico de Genebra foram desenvolvidas as ideias definidas como supralapsarismo (supra=prioridade e lapso=queda).

Da perspectiva teológica, o supralapsarismo é uma maneira de ordenar os decretos divinos de tal forma que a decisão e o decreto de Deus em relação à predestinação dos seres humanos, ao céu ou ao inferno, antecede os seus decretos de criar os seres humanos e permitir a sua queda:

A ordem supralapsária dos decretos divinos deixa claro que o primeiro e principal propósito de Deus no seu relacionamento com o mundo é glorificar a si mesmo (sempre o motivo principal de Deus em tudo), salvando algumas criaturas e condenando outras. A dupla predestinação, portanto, logicamente antecede à criação, à queda e todas as demais coisas, inclusive a encarnação de Cristo e sua expiação, na intenção e no propósito de Deus.[22]

O pensamento de Teodoro de Beza difundido pela Academia de Genebra não era unanimidade. Entre os seus opositores ganha destaque o teólogo e pastor holandês Jacó Armínio (1560-1609), de onde se deriva o movimento designado de arminianismo.

Após ter estudado teologia reformada na Academia de Genebra, retornando para a Holanda, iniciou o seu ministério na igreja reformada de Amsterdã, aos 29 anos de idade, vindo posteriormente a se casar com a filha de um influente cidadão. Em 1603 foi nomeado para ocupar a prestigiosa cátedra de teologia na universidade de Leiden. Armínio rejeitou e criticou abertamente as ideias do supralapsarismo, e também a doutrina clássica do calvinismo como um todo. Sua posição foi sinergista. A controvérsia ultrapassou os limites das salas acadêmicas chegando aos púlpitos e às ruas, desencadeando em seguida uma guerra civil entre as províncias dos Países Baixos, que durou de 1604 a 1609, quando da morte de Armínio causada por tuberculose.[23]

Após a morte de Armínio, quarenta e seis ministros holandeses elaboraram um documento chamado de “Remonstrância” (protesto), que resumia a rejeição de Armínio e deles mesmos do calvinismo rígido, e o apresentaram perante as autoridades políticas da Holanda em 1610. O documento foi dividido em cinco pontos:

•        Artigo I - Que Deus, por um eterno e imutável plano em Jesus Cristo, seu Filho, antes que fossem postos os fundamentos do mundo, determinou salvar, de entre a raça humana que tinha caído no pecado – em Cristo, por causa de Cristo e através de Cristo – aqueles que, pela graça do Santo Espírito, crerem neste seu Filho e que, pela mesma graça, perseverarem na mesma fé e obediência de fé até o fim; e, por outro lado, deixar sob o pecado e a ira os contumazes e descrentes, condenando-os como alheios a Cristo, segundo a palavra do Evangelho de Jo 3.36 e outras passagens da Escritura.

•        Artigo II - Que, em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do mundo, morreu por todos e cada um dos homens, de modo que obteve para todos, por sua morte na cruz, reconciliação e remissão dos pecados; contudo, de tal modo que ninguém é participante desta remissão senão os crentes.

•        Artigo III - Que o homem não possui por si mesmo graça salvadora, nem as obras de sua própria vontade, de modo que, em seu estado de apostasia e pecado para si mesmo e por si mesmo, não pode pensar nada que seja bom – nada, a saber, que seja verdadeiramente bom, tal como a fé que salva antes de qualquer outra coisa. Mas que é necessário que, por Deus em Cristo e através de seu Santo Espírito, seja gerado de novo e renovado em entendimento, afeições e vontade e em todas as suas faculdades, para que seja capacitado a entender, pensar, querer e praticar o que é verdadeiramente bom, segundo a Palavra de Deus [Jo 15.5].

•        Artigo IV - Que esta graça de Deus é o começo, a continuação e o fim de todo o bem; de modo que nem mesmo o homem regenerado pode pensar, querer ou praticar qualquer bem, nem resistir a qualquer tentação para o mal sem a graça precedente (ou preveniente) que desperta, assiste e coopera. De modo que todas as obras boas e todos os movimentos para o bem, que podem ser concebidos em pensamento, devem ser atribuídos à graça de Deus em Cristo. Mas, quanto ao modo de operação, a graça não é irresistível, porque está escrito de muitos que eles resistiram ao Espírito Santo.

•        Artigo V - Que aqueles que são enxertados em Cristo por uma verdadeira fé, e que assim foram feitos participantes de seu vivificante Espírito, são abundantemente dotados de poder para lutar contra Satã, o pecado, o mundo e sua própria carne, e de ganhar a vitória; sempre – bem entendido – com o auxílio da graça do Espírito Santo, com a assistência de Jesus Cristo em todas as suas tentações, através de seu Espírito; o qual estende para eles suas mãos e (tão somente sob a condição de que eles estejam preparados para a luta, que peçam seu auxílio e não deixar de ajudar-se a si mesmos) os impele e sustenta, de modo que, por nenhum engano ou violência de Satã, sejam transviados ou tirados das mãos de Cristo [Jo 10.28]. Mas quanto à questão se eles não são capazes de, por preguiça e negligência, esquecer o início de sua vida em Cristo e de novamente abraçar o presente mundo, de modo a se afastarem da santa doutrina que uma vez lhes foi entregue, de perder a sua boa consciência e de negligenciar a graça – isto deve ser assunto de uma pesquisa mais acurada nas Santas Escrituras antes que possamos ensiná-lo com inteira segurança.
A resposta oficial veio através do Sínodo de Dort, realizado de 13 de novembro de 1618 a 9 de maio de 1619, com a participação de 84 membros e 18 delegados, que afirmaram os Cinco Pontos do Calvinismo em resposta aos Cinco Artigos dos remonstrantes arminianos.[24] Os Cinco Pontos Calvinistas reafirmaram:

- A depravação total do homem
- A eleição incondicional
- A expiação limitada
- A graça irresistível
- A perseverança dos santos

CONCLUSÃO

Ao longo dos séculos as controvérsias entre sinergismo e monergismo, calvinismo e arminianismo se propagaram ganhando uma diversidade de variações e contornos em suas fórmulas teológicas. Alguns calvinistas se aproximaram das ideias arminianas, enquanto alguns arminianos aderiram a alguns posicionamentos calvinistas.

Na atualidade podemos destacar como defensores do calvinismo os nomes de R. C. Sproul, John Piper e J. I. Packer, e do lado arminiano Roger Olson, Norman Geisler e Dave Hunt.

As Assembleias de Deus no Brasil, maior denominação pentecostal nacional, adota de maneira geral a perspectiva arminiana, entendendo que a salvação é integralmente obra da graça de Deus, não merecida nem obtida por meio das obras, e que ao mesmo tempo é recebida por pessoas que livremente a aceita mediante o arrependimento e a fé.

Para conhecer os principais argumentos arminianos e as suas refutações bastante convincentes aos textos bíblicos utilizados pelos calvinistas na defesa de suas ideias, sugiro a leitura das obras abaixo relacionadas:

- Teologia Arminiana, de Roger Olson. Editora Reflexão.
- Contra o Calvinismo, de Roger Olson. Editora Reflexão.
- História das Controvérsias Teológicas na Teologia Cristã, de Roger Olson. Editora Vida.
- História da Teologia Cristã, de Roger Olson. Editora Vida.
- Livre-arbítrio e Salvação, de Erasmo de Roterdã. Editora Reflexão.
- Por que não sou Calvinista, de Jerry L. Walls e Joseph R. Dongel. Editora Reflexão.
-Eleitos, mas livres, de Norman Geisler. Editora Vida.
- Teologia dos Reformadores, de Timothy George. Vida Nova.
- A Doutrina da Predestinação, de Severino Pedro. CPAD.
- Teologia Sistemática Pentecostal, de Antonio Gilberto e outros. CPAD
-Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal, de J. Rodman Williams. Editora Vida.

Altair Germano – Pastor, teólogo, pedagogo, escritor e conferencista. Atualmente é o 1º Vice-Presidente da Assembleia de Deus em Abreu e Lima-PE (COMADALPE), Vice-Presidente do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil – CGADB, e membro da Diretoria da Assembleia Administrativa da Sociedade Bíblica do Brasil –SBB.

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